sábado, 21 de março de 2015

ECLESIOLOGIA SOB VISÃO GNÓSTICA.



Ao contrário do que se poderia pensar, o
movimento cristão primitivo não constituiu um
bloco monolítico de crenças e ritos administrados
por uma única e incontestada instituição. Durante
o periodo primitivo da era cristã da Igreja
estima-se centenas de seitas dissidentes
suscitadas no decorrer dos três primeiros séculos
da era cristã.

Nenhuma das heresias desse período representou
maior risco para a estabilidade da Igreja primitiva
do que a dos gnósticos. Surgido no início do
segundo século, o gnosticismo alcançou o mais
alto ponto de sua trajetória durante as duas
décadas finais desse mesmo século para extinguir-se
na segunda metade do século seguinte, o
terceiro, cedendo seu espaço a novas heresias,
como a dos maniqueus que, aliás, adotou
conceitos gnósticos na formulação de sua
doutrina.

Foi considerável o atrito ideológico entre as
diversas correntes que disputavam a hegemonia
do movimento cristão, como ainda hoje se pode
observar dos veementes textos sobreviventes, de
autoria dos heresiólogos de então, na defesa do
que entendiam como princípios inegociáveis da
única e verdadeira fé. O resultado de tais
contendas ideológicas é que definiu para a
posteridade o perfil do cristianismo.
A temática deste livro desenvolve-se, portanto, em
zona de turbulência, em território contestado,
sobre o qual tendências divergentes lutam por
expandir-se e consolidar-se com o reconhecido
vigor que costuma ser posto em discussões
políticas ou religiosas e que parece redobrar
quando o debate combina as duas situações como
é o caso que temos para exame.
Em assuntos de tal natureza, a abordagem deve
ser cautelosa e balanceada, mas não tímida a
ponto de inibir, no expositor, uma tomada de
posição. O dever de informar não exclui o direito
de opinar, desde que as atitudes e intenções do
autor fiquem claramente identificadas para o
leitor.
Nada tenho a objetar aos autores que, no
tratamento deste ou de outros assuntos
potencialmente controvertidos, prefiram
resguardar-se na discrição, tão imparcial quanto
possível. Com uma importante ressalva: os antigos
critérios de aferição de objetividade e
subjetividade estão sendo rudemente
questionados pela física moderna, para a qual até
o simples ato de observar um fenômeno produz
nele uma interferência que o modifica. Do que se
depreende que a observação e a conseqüente
informação não se livram de um colorido de
participação, segundo nos diz Heinseberg, citado
por Capra: "o que observamos não é a natureza
propriamente dita, mas a natureza exposta ao
nosso método de questionamento".
Os autores que optam por um mínimo de
envolvimento pessoal merecem respeito; sejam
suas razões acadêmicas, sociais, religiosas ou de
mera preservação de status. Neste livro, porém,
assumimos uma postura opinativa, amadurecida
na meticulosa análise crítica do material estudado.
Claro que prevalece intacto para o leitor o direito
às suas próprias conclusões, destiladas do exame
das informações que lhe são passadas nesta e em
outras obras. Entendo, porém, ser meu dever
expor-lhe com lealdade o meu posicionamento na
questão, ao mesmo tempo em que acrescento
uma declaração de princípio: sou cristão naquilo
que a doutrina de Jesus preservou de sua essência
intemporal, - o amor ao próximo como
instrumento para realização do reino de Deus em
cada um de nós.

Devo admitir, contudo, que sou um cristão que
não se acomoda ao perfil, ou melhor, aos perfis
traçados pelas diversas correntes ortodoxas. Mas,
que é, realmente, um cristão? Não é tão fácil,
como parece, caracterizá-lo, ou Hans Kung não
teria escrito um volumoso tratado apenas para
expor suas cogitações a respeito do problema. É
que rejeito aspectos que o cristianismo oficial
considera inalienáveis, como trindade, divindade
de Jesus, pecado original, céu, inferno, juízo final,
demônio, ao passo que outros aspectos, embora
contidos na mensagem de Jesus, não conseguiram
espaço nas estruturas teológicas, como a preexistência
do espírito, a doutrina das vidas
sucessivas e viabilidade de um intercâmbio entre
vivos e mortos. Conseqüentemente, sobram-me
no cristianismo oficial, nas suas várias
denominações, conceitos com os quais nada tenho
a fazer e faltam-me outros - que encontro nos
ensinamentos de Jesus, mas não na doutrina
ortodoxa - sem os quais o quadro geral da vida
não faz, para mim, nenhum sentido.
Lê-se no Evangelho de Tomé que precisamente a
pedra rejeitada pelos construtores é a mais
importante, por ser a que irá fechar o arco da
abóbada. O Cristo parece falar nesse logion em
tom profético numa antecipação do futuro. A
observação aplica-se sem retoques à situação
criada pelos formuladores da doutrina eclesiástica
que rejeitaram praticamente em bloco a
realocação espiritual, que teria garantido um
acabamento elegante e seguro às construções
teóricas, em favor de cristalizações dogmáticas
que não resistiram à passagem do tempo.
Aí está o resultado desse irreparável equívoco:
estamos diante de uma estrutura doutrinária
danificada por inúmeras infiltrações e irrecuperáveis
fraturas e que nada tem a dizer a uma
humanidade aturdida que, à falta de
conhecimento confiável, vaga sem rumo, em
busca de mecanismos de fuga, em esforço inútil
para escapar a uma realidade incompreensível e
perversa.

Precisamente nessa hora de perplexidades, um
obscuro trabalhador rural árabe resgata, no Alto
Egito, um conjunto de documentos, sobre os quais
pousavam mil e seiscentos anos de silêncio e
reclusão. Para surpresa de muitos, encontram-se
nesses textos algumas das mais importantes
pedras angulares rejeitadas no período formador
das arquiteturas teológicas. Não é de se esperar
que esse impactante achado promova mudanças
de vulto no contexto doutrinário ortodoxo, mas é
certo que os documentos coptas nos
proporcionam meios para uma realista reavaliação
do modelo de cristianismo que chegou até nós.
O quadro teológico ortodoxo resulta de opções
feitas nos séculos iniciais - por pessoas
certamente bem intencionadas, mas falíveis -, à
vista de um amplo conjunto de alternativas.
Dentre as alternativas rejeitadas estavam
conceitos perfeitamente válidos e inteligentes que,
antes de serem gnósticos e, conseqüentemente,
suspeitos de contaminação herética, teriam
proporcionado ao cristianismo uma estrutura
doutrinária racional e aberta para o futuro, pronta
para receber e acomodar, sem abalos ou temores,
irrecusáveis revelações e conquistas científicas.
Em vez disso, ficamos com uma teologia fechada
em si mesma, como uma pesada construção
medieval, tão obsoleta hoje quanto os conceitos
adotados no projeto.
Por isso, vai ficando cada vez mais difícil e mais
desastroso recuar e recompor. A reabilitação de
Galileu foi o primeiro recuo envergonhado, após
séculos de obstinada resistência. E quando
conceitos mais dramáticos como o da
preexistência do ser espiritual adquirirem status
de verdade cientificamente demonstrada (o que
para muitos já aconteceu)?
Preexistência pressupõe sobrevivência e
renascimento. Sendo isso verdadeiro, então o que
fazer de céu, inferno, juízo final, salvação coletiva,
pecado original e coisas desse gênero?
Não há dúvida, pois, de que a redescoberta do
gnosticismo vem proporcionar uma oportunidade
singular de se promover uma releitura no
cristianismo em si. É uma situação curiosa, dado
que, dessa vez, não é a ortodoxia que contesta a
heresia, mas esta é que se põe a questionar
aquela.

Poderíamos simular um jogo especulativo,
segundo o qual seriam testadas as diversas
hipóteses imaginadas para a fisionomia atual do
cristianismo se tivessem seus formuladores
ideológicos adotado certos conceitos tido por
gnósticos. Mas, como dizem os ingleses, de nada
adianta chorar sobre o leite derramado. Perdeu-se
a oportunidade de uma construção, na qual cada
arco ou abóbada teria no lugar certo a sua pedra
angular. É preciso lembrar também que não se faz
uma arcada somente com pedras angulares. É até
provável que a hegemonia do grupo gnóstico
sobre a massa maior, que Pagels4 considera um
cristianismo quantitativo, tivesse sido igualmente
indesejável, mas não há dúvida de que a rejeição
do material gnóstico foi fatal à estabilidade das
construções teológicas do cristianismo ortodoxo.
A tese que este livro propõe pode ser expressa em
poucas palavras: foi um equívoco a opção pelo
formato de cristianismo que hoje conhecemos, que
excluiu a contribuição do gnosticismo.
Tanto quanto as indefinições de autores
exageradamente preocupados com a
imparcialidade, impacientam-me as longas
introduções, quando estou do outro lado do livro,
ou seja, como leitor. É hora, pois, de colocar aqui
um ponto final e passarmos logo ao livro em si.

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