sábado, 21 de março de 2015

O Gnosticismo e a Realidade Espiritual



I- Descobertas Sincrônicas

Por inexplicável sincronismo, duas das mais
importantes descobertas arqueológicas de textos
bíblicos ocorreram ao encerrar-se a primeira
metade do século XX. Ambas devidas ao mero
acaso, ou melhor, não resultantes de pesquisa
sistemática e dirigida, ambas por beduínos árabes
incapazes de avaliar a importância dos textos e o
impacto que produziriam como disparadores de
intenso e extenso trabalho de reexame do
cristianismo tal como hoje o conhecemos.

A primeira descoberta ocorreu em 1945, nas
imediações de Nag- Hammadi, no Alto Egito, por
um camponês em busca de fertilizantes naturais
para as suas plantações. Chamava-se ele
Mohammed Ali-al-Samman e estava a escavar a
terra quando deu com aquela urna de barro que
continha enigmáticos rolos de papiros, protegidos
por tiras de couro, e recobertos de uma escrita
misteriosa.
Na segunda, em 1947, outro Mohammed (ad Dhib,
o Chacal) encontrou rolos semelhantes numa
caverna nas imediações do Mar Morto, na Judéia.
Conhecidos estes como os Manuscritos do Mar
Morto, pertenceram, segundo se apurou mais
tarde, a uma comunidade essênia estalecida na
região, ou mais especificamente, no local
denominado Qumram. Por meio desses
documentos foi possível reconstituir, com relativa
segurança, crenças, rituais, hábitos e costumes da
comunidade essênia ali existente cerca de um
século antes do nascimento de Jesus.
A despeito das complexidades criadas em torno de
um achado desse vulto histórico, desde a
aquisição dos manuscritos até sua devida
classificação, tradução e interpretação, já em
1955, oito anos, portanto, após a descoberta,
Millar Burrows publicava seu importante livro, logo
traduzido em português e editado, infelizmente
sem data, pela Porto Editora, Porto, Portugal.
Desde 1948, contudo, vinha Burrows escrevendo
sobre o assunto em revistas especializadas.
Artigos de Dupont-Sommer, erudito francês de
status internacional, começaram a surgir em 1950.
Encontramos em Charles Francis Potter a
informação de que foi uma entrevista de Edmund
Wilson para a publicação americana The New
Yorker com o Prof. Dupont-Sommer que
"despertou os americanos" para a surpreendente
descoberta.
Por essa época, artigos acerca dos documentos do
Mar Morto começaram a surgir às dezenas pelo
mundo afora, bem como livros de vários autores
interessados em comunicar-se com o grande
público, fora dos círculos mais ou menos iniciáticos
da erudição internacional.
A mensagem de Nag-Hammadi levou muito mais
tempo para alcançar o público leigo e mesmo os
círculos eruditos mais afastados do núcleo central,
que se empenhava na classificação e exame dos
papiros, uma vez concluída vitoriosamente o que
Charles F. Pfeiffer denomina "the battle ofthe
scrolls" - a batalha dos rolos (manuscritos).
Só em 1955, dez anos após o achado de Nag-
Hammadi, o Prof. Gilles Quispel, eminente
especialista em história da religião, de Utrecht,
Países Baixos, leu, num hotel do Cairo, a primeira
linha de um dos manuscritos. Dizia assim: "Estas
são as palavras secretas que o Jesus Vivo
pronunciou e que o gêmeo, Judas Tomé,
escreveu". Se aquilo era mesmo verdade, então o
documento seria o famoso e perdido Evangelho de
Tomé, do qual se conheciam alguns fragmentos
em grego, descobertos em 1890.
Mas havia outros manuscritos na histórica urna de
barro de Nag-Hammadi, talvez não tão
importantes quanto o livro de Tomé, mas de
considerável valor no reexame crítico do
cristianismo primitivo.
O Prof. Quispel, o Prof. Henri-Charles Puech e
outros constituíram o grupo central primitivo, ao
qual foi confiada a tarefa de decifrar o conteúdo
dos papiros egípcios. Em 14 de maio de 1957,
Puech leu perante o Institut de France, em Paris,
seu primeiro papel sobre os textos de Nag-
Hammadi, mais especificamente, acerca do
Evangelho de Tomé. Estudos assim, menos
herméticos e mais amplos, destinados ao leitor
comum, somente começaram a surgir aí pela
década de 70. O de Puech, por exemplo, é de
1978; ainda que reproduzindo antigas
conferências que recuam a 1956; o de MacGregor,
de 1979, com também o da Dra. Elaine Pagels.
O Rev. Potter7 queixa-se desse retardo em dar
conhecimento ao mundo de assuntos dessa
importância, atribuindo-o ao "arrogante profissionalismo"
de certos eruditos tipo torre-demarfim,
segundo os quais o "populacho ignorante"
poderia usar indevidamente a informação que lhe
fosse transmitida. Este aspecto é particularmente
agudo, no entender de Potter, quando as
descobertas provocam desarrumações mais ou
menos sérias nas estruturas ideológicas das
igrejas, que os entendidos evitam perturbar.
Convém lembrar que Potter se refere, nesses
comentários, aos Manuscritos do Mar Morto, cujo
impacto sobre a ortodoxia cristã pode ter tomado
muita gente de surpresa, mas não atingiu níveis
perturbadores. Já os documentos de Nag-Hammadi
são potencialmente mais devastadores, naquilo
em que contestam, e questionam aspectos vitais
ao pensamento cristão ortodoxo. As igrejas
tradicionais, inclusive as reformadas, poderão
ignorar por algum tempo, ou até
permanentemente, as dificuldades criadas por
esses documentos, mas não sei se, com isso,
estariam agindo de maneira inteligente. É que os
Manuscritos do Mar Morto têm muito a ver com
idéias e conceitos incorporados à doutrina cristã,
por via dos ensinamentos atribuídos a Jesus, mas
são anteriores ao seu nascimento e, portanto, ao
cristianismo. Já os textos de Nag-Hammadi, não:
eles são contemporâneos à fase formadora das
doutrinas cristãs, ao tempo em que estas se
cristalizaram em sacramentos, ritos, dogmas e
estruturas administrativas.
A urna de barro encontrada em Nag-Hammadi
continha toda uma 'biblioteca' em língua copta
composta de cinqüenta e dois textos, pertencentes
a uma desaparecida comunidade
gnóstica. Supõem os estudiosos (Puech, Pagels e
outros) que esses textos resultem de traduções de
documentos ainda mais antigos, em grego, mas
Gillabert imagina para eles um "substrato hebreu,
aramaico do copta correspondente".
Os papiros situam-se entre os anos 350 e 400,
segundo os testes usuais de laboratório. Para os
documentos originais, contudo, dos quais teriam
sido feitas as traduções, as datas são
especulativas. Supõe-se que originais devam
reportar-se, na opinião de Pagels, ao período de
120 a 150, à vista de referências encontradas a
respeito de Irineu, escritas em 180. Puech acha
que a redação primitiva do Evangelho de Tomé
"poderia situar-se no meado, ou, o mais tardar, na
segunda metade do segundo século". Quispel
sugere as imediações do ano 140 para elaboração
do original, que, tanto ele como Puech, supõem ter
sido em grego, como vimos há pouco. Acham
outros que, por terem sido considerados heréticos,
os documentos gnósticos seriam,
necessariamente, posteriores à redação dos
canónicos, produzidos na versão primitiva, entre
os anos 60 e 110.
A Dra. Pagels informa, contudo, que, na opinião
mais recente do Prof. Helmut Koester, da Harvard,
embora coligidos por volta do ano 140, os ditos
que compõem o Evangelho de Tomé podem conter
material mais antigo que os evangelhos canónicos,
o que recuaria a data original desse material até à
segunda metade do primeiro século, ou seja, entre
os anos 50 e 100. Opinião semelhante vamos
encontrar em Gillabert, que chama a atenção para
o fato de que a técnica da comunicação naqueles
tempos era predominantemente oral e precedia
em muito a elaboração dos textos, que apenas
documentavam os temas da pregação com o
objetivo de preservar as tradições orais. Sem me
atrever a entrar na disputa com os luminares da
erudição internacional, parece-me aceitável essa
observação, mesmo porque há um forte colorido
iniciático e secreto na coletânea de ditos
recolhidos que seriam, portanto, meros lembretes
a serem desenvolvidos em maior amplitude em
palestras, sermões e debates com grupos que
indicassem melhor receptividade e preparo
perante ensinamentos mais profundos, que os
logia apenas sugeriam. A redação sumária,
enigmática de tais lembretes exige desdobramentos
e aprofundamentos orais, mesmo
assim a partir de chaves apropriadas, às quais
apenas alguns expositores teriam acesso e
competência para usar corretamente.
Gillabert vai mais longe ainda, ao criticar com
característica veemência a postura-padrão das
principais autoridades acadêmicas que
consideram praticamente indiscutível a conclusão
de que o texto copta encontrado em Nag-
Hammadi seja tradução de original grego. Discutiremos
esse aspecto alhures, neste livro.
Em verdade, lamenta Gillabert que após longa
fase de preservação, os textos coptas já se
apresentem, ao cabo de uns poucos decênios, tão
pesadamente sobrecarregados de comentários,
classificações e catalogações, como se houvesse
por trás de tudo isso um propósito de os "esvaziar
de sua substância viva".
Para resumir o conteúdo deste capítulo e concluílo,
podemos escrever o seguinte: os documentos
em língua copta encontrados em Nag-Hammadi,
em 1945, compunham uma biblioteca gnóstica e
datam, materialmente, do século quarto, mas
reportam-se a manuscritos originais que recuam,
no mínimo, a meados do segundo século e, em
alguns aspectos tradicionais, à segunda metade
do primeiro século, o que nos leva de volta à
época em que ainda viviam os apóstolos diretos
do Cristo.
Para exata avaliação da importância desses
textos, é preciso ainda considerar que, embora
não se possa atestar a pureza virginal dos escritos,
é certo que pelo menos durante quase dezesseis
séculos eles não sofreram manipulações
mutiladoras, o que está longe de poder ser
assegurado quanto aos documentos canónicos.
Daí ofrisson que a descoberta causou nos círculos
da erudição internacional.
O Prof. Hans Jonas, citado pela Dra. Pagels,
desenha com poucas e vigorosas palavras, o
agitado cenário que a descoberta criou, ao
suscitar "uma persistente maldição de bloqueios
políticos, litígios e, acima de tudo, ciumeira erudita
e 'primeirismo'".
O desejo de autoprojeção foi de tal intensidade
que se criou o que Jonas classifica como
"verdadeira chronique scandaleuse" no contexto
acadêmico internacional. É a esse contexto, não
obstante, que temos de recorrer para tentar
entender o porquê de toda esta celeuma em torno
do gnosticismo.
II - O Problema da Abordagem
Mas o que vem a ser, precisamente, uma
biblioteca gnóstica copta? Para os nossos
condicionamentos modernos, biblioteca é uma
ordenada coletânea de livros e documentos
colocados à disposição de eventuais leitores.
Com as necessárias adaptações, o conceito
moderno serve para caracterizar uma biblioteca
do século IV de nossa era. Com a diferença de
que os livros não eram impressos e
encadernados como ora os conhecemos, mas
escritos à mão, em rolos de papiro ou couro,
normalmente de ovelha ou de cabra. Não
sabemos se o achado de Mohamed, em Nag-
Hammadi, teria constituído toda a biblioteca da
seita localizada nas imediações, ou apenas parte
dela. Mesmo assim, com seus modestos
cinqüenta e dois 'livros', foi uma das mais
importantes descobertas arqueológicas dos
últimos tempos.
Em verdade, a impressão que nos fica da leitura
dos estudos gnósticos é a de que a opinião
pública, tomada como um todo, ainda não se deu
conta do que isso representa na reavaliação do
cristianismo como doutrina e como movimento.
Consciente desse aspecto, Will Durant não hesita
em afirmar ao referir-se ao processo de
reavaliação crítica desencadeado pelas
discussões em torno da historicidade de Jesus
que "os resultados podem, no devido tempo,
tornar-se tão revolucionários quanto o próprio
cristianismo".
A biblioteca de Nag-Hammadi tem destacada
contribuição a oferecer a essa tarefa, colocando
diante de nós uma espécie de face oculta do
cristianismo, como que uma alternativa, uma
opção que, por não ter conseguido "vingar", nem
por isso deixa de representar fator de relevância
no processo de revisão posto em curso, desde
que os documentos começaram a ser traduzidos
e interpretados. Dentro dessa mesma linha de
raciocínio, MacGregor colocou como subtítulo de
seu livro a expressão "A Renaissance in Christian
Thought" (Um renascimento do pensamento
cristão).
Por outro lado, o livro da Dra Pagels chama-se
The Gnostic Gospels (Os Evangelhos Gnósticos).
E isso também precisa de um comentário.
Quando hoje pensamos em Evangelhos, temos
em mente os documentos canónicos tradicionais,
considerados de boa linhagem doutrinária pela
Igreja, no Concílio de Cartago, em 397: os três
sinóticos, o Evangelho de João, os Atos dos
Apóstolos, as diversas epístolas e o Apocalipse
de João. A questão é que circulava nos primeiros
tempos uma quantidade incalculável de textos
relacionados com a vida e os ensinamentos de
Jesus. Se muitos deles eram claramente
fantasiosos e fictícios, em parte ou no todo, é
igualmente certo que continham informações e
idéias dignas de consideração e que até
merecessem a inclusão em textos oficiais. A
linha demarcatória foi traçada com nitidez e
inflexibilidade: do lado de cá, os únicos textos
admissíveis; do outro lado, a multidão ignara dos
apócrifos, ou seja, dos desautorizados,
inaceitáveis.

Daniel-Rops forma que prevaleceu, na escolha, o
duplo critério de "catolicidade e apostolicidade",
mas, pouco antes (pag. 312) aludira o mesmo
autor ao texto que circulava entre os egípcios,
como "muito ascético e já fortemente eivado de
gnosticismo". Do que se depreende que, na
pintura do painel geral das letras canónicas,
adotou-se o cuidado de excluir a coloração
gnóstica, em particular, e a herética, em geral.
No entender da Igreja, portanto, evangelhos
autênticos são os canónicos. Só esses. Nenhum
deles, porém, foi encontrado entre os volumes
da biblioteca de Nag-Hammadi e sim textos que,
pouco depois, já no final do século quarto, como
vimos, a Igreja rejeitaria definitivamente.
Mas, quem eram os coptas que pautavam suas
atividades religiosas por esses textos
considerados apócrifos? O termo em si
representa um curioso exemplo migratório no
espaço da lingüística, a partir da europeização
da palavra árabe Kibt (ou Kubt), aí pelo século
XIV, segundo a Britânica (6,424) e que, por sua
vez, provinha da palavra grega Aegyptioi
(egípcios), dado que os coptas chamavam a si
mesmo "o povo do Egito". Com todo o direito,
aliás, pois eram descendentes diretos dos
primitivos habitantes do Egito dos faraós.
São obscuras as origens do cristianismo no Egito,
mas é certo que práticas cristãs encontravam-se
ali bem implantadas na metade do terceiro
século, quando Antônio marca sua presença
como importante santo local.
Os textos evangélicos teriam sido traduzidos em
língua copta aí pelo século quarto. A orientação
doutrinária e decisões administrativas vinham da
igreja de Alexandria, importante centro cultural e
que até o século V exerceu relevante papel no
movimento, por intermédio de figuras eminentes
do pensamento cristão como Orígenes, Atanásio
e Cirilo.
Foram inúmeras as comunidades cristãs
espalhadas pelo Egito naqueles tempos, tanto
igrejas, como mosteiros. Muitas dessas comunidades
guiavam-se por preceitos e procedimentos
gnósticos, como a de Nag-Hammadi. Sabe-se,
por exemplo, que mais tarde, em 616, os invasores
persas destruíram cerca de 600 mosteiros
somente nas proximidades de Alexandria. É bem
plausível que a biblioteca de Nag-Hammadi
tenha sido enterrada às pressas, na calada da
noite, a fim de preservar os preciosos
manuscritos de ataques arrasadores como esse.
Tanto quanto o cristianismo primitivo, o
gnosticismo desenvolveu- se em ambiente social,
geográfico e histórico de difícil entendimento
para a mentalidade contemporânea. Vivemos
numa época na qual uma nova encíclica papal
torna-se conhecida em poucas horas, no mundo
inteiro, em inúmeras línguas, através de um
sistema de divulgação jamais sonhado. Câmeras
de televisão e de cinema, gravadores e
máquinas fotográficas registram cada passo ou
palavra do papa ou dos governantes do mundo.
O que eles falaram ontem ou fizeram hoje pela
manhã, é notícia por toda a parte à noite, onde
quer que circule um jornal ou haja um aparelho
de rádio ou de TV. Nos primeiros séculos de
nossa era, o mundo era formado por pequenas
ilhas de gente disseminadas pela vastidão dos
territórios vazios. Ainda há pouco, no início do
século XIX, Napoleão dispunha apenas do cavalo
como meio de comunicação e transporte.
Fechadas em si mesmas e isoladas das demais,
na dependência de ocasionais visitas, as
comunidades cristãs e gnósticas primitivas
desenvolviam doutrinas paralelas, rituais
distintos, práticas que se chocavam entre si,
quando a instituição era tomada como um todo.
Daí a proliferação de heresias.
É o que testemunhamos a cada momento nas
veementes advertências e queixas de Paulo nas
suas epístolas, acompanhando, com indisfarçável
apreensão e angústia, os desvios doutrinários e
de procedimento nas diversas comunidades por
ele iniciadas.
Em Corinto - soube por gente da casa de Cloé -,
há problemas de luxúria, abusos alimentares,
desvios doutrinários, tumulto no exercício dos
carismas e, mais grave que tudo,
questionamentos quanto à ressurreição.
... "cada um de vós diz: "- Eu sou de Paulo!", ou
"- Eu sou de Apolo!", ou "- Eu sou de Cristo!", ou
"- Eu sou de Cefas!". Cristo estaria dividido? (I
Cor. 1,11-13)
Com energia e autoridade, não hesita em
chamar de insensatos aquele que ignora que só
morrendo e sepultada, a semente pode revelar a
vida.
Da mesma forma se põe diante dos gálatas, aos
quais chama insensatos por terem retomado
antigas práticas obsoletas depois de haverem
experimentado as alegrias e maravilhas do
trabalho mediúnico, em intercâmbio com os
"mortos".
A Timóteo recomenda "não ensinar outra
doutrina, nem se ocupar com fábulas e
genealogias sem fim, as quais favorecem mais
as discussões do que o desígnio de Deus". (I Tim.
1,3) Nessa mesma epístola, dedica o capítulo 4
aos cuidados que se deve ter com os falsos
doutores, tema ao qual retorna na segunda
epístola (2,14), tanto quanto na carta a Tito
(1,10).
A imagem que colhemos, pois, é a de
comunidades doutrinariamente inseguras, sob
constante assédio de falsos profetas, falsos
doutores e falsos líderes, além de expostas às
inúmeras fraquezas íntimas próprias ao ser
humano, ainda mal acostumado a esforços
regeneradores. O terreno era fértil, portanto,
para a erva daninha das dissensões e rivalidades
doutrinárias, ao passo que despreparado para o
cultivo da boa semente da disciplina, do
comportamento ético, da fraternidade.
Isso acontecia em comunidades relativamente
pequenas e sobre as quais ele, Paulo, exercia
atento controle, seja informando-se através de
mensageiros de sua confiança, como os parente
de Cloé, seja ele próprio viajando para revisitar
as suas comunidades, plantadas em solo difícil.
Mesmo assim, quanto desencanto em seu
coração com revezes inesperados e recuos
desastrosos entre as ovelhas do rebanho que lhe
coubera apascentar.
Não nos esqueçamos ainda de que isso se passa
duas ou três décadas após morte de Jesus e não
há dois ou três séculos, e numa época em que
eram mínimas as edificações doutrinárias, com
uma teologia ainda embrionária que não exigia,
para seu entendimento, esforços
desproporcionados dos fiéis.
A luta pela preservação da boa doutrina mal se
iniciava e seria uma constante, pelos séculos
afora, a tônica das preocupações administrativas
dos líderes da igreja em todos os tempos e
latitudes. O desapaixonado observador moderno
tem de admitir, como Pagels, que o êxito em
termos humanos foi indiscutível, mas pelo menos
dois aspectos ficam expostos a severos
questionamentos: 1. os critérios de seleção e
fixação de conceitos ortodoxos; 2. a metodologia
formulada para neutralizar as divergências e
contestações. Em outras palavras: as estruturas
teológicas consideradas ortodoxas foram sendo
montadas por um longo processo seletivo que
optava por um caminho entre muitos outros.
Seriam corretas essas opções? Eram as
melhores? Só o tempo diria. E quando o tempo
começou a falar sobre o assunto, verificou-se
que muita das opções foram infelizes, para dizer
o mínimo.
Ao nos prepararmos para uma análise crítica do
fenômeno do gnosticismo, há que se levar em
conta aspectos semelhantes. O movimento
gnóstico durou cerca de século e meio, entre o
princípio do segundo século e a segunda metade
do terceiro. Nesse período, disseminou suas
comunidades por toda parte, envolveu-se em
dissidências e desenvolveu, em torno de uma
doutrina básica variações de maior ou menor
relevância. O gnosticismo do Alto Egito, por
exemplo, pode se distanciar consideravelmente,
como doutrina e prática, do que era adotado em
comunidades gregas ou asiáticas, tanto quanto a
teologia dos primeiros anos pode diferir da mais
elaborada e complexa dos anos últimos, no final
do terceiro século. Na verdade, torna-se
extremamente difícil ao observador moderno
caracterizar com razoável teor de precisão e
confiabilidade como era o gnosticismo puro, se é
que houve tal coisa, dado que o próprio
cristianismo emergente era mais um conjunto de
seitas em conflito do que um corpo doutrinário
coerente e uniforme.
É preciso lembrar que não dispomos de nenhuma
outra biblioteca gnóstica senão a encontrada em
Nag-Hammadi que, por importante que seja,
pode até não ser das mais representativas. Não
há como proceder, pelo menos por enquanto, a
estudos comparativos, que ficam na dependência
de novas e improváveis descobertas
arqueológicas.
Os coptas esforçaram-se ao longo de vários
séculos por manter sua identidade racial, mas a
influência árabe a partir do século VII acabou por
tornar-se irresistível.
Ensina Gillabert que "a língua copta descende
em linha reta da língua dos hieróglifos", mas, em
verdade, ela sofreu forte influenciação do grego,
como se pode ver nas reproduções fotográficas
dos documentos encontrados em Nag-Hammadi.
A Britânica informa (8, 109) que o texto, em
demótico, constante da Pedra da Roseta fica
entre a antiga língua egípcia e o copta. A partir
do século XI, o copta começou a ceder espaço ao
árabe. Um viajante por nome Vansleb, que
visitou o Egito em 1672/1673, surpreendeu-se ao
encontrar gente que ainda falava aquela língua.
Séculos depois, em 1937, nas vizinhanças de
Tebas, alguns camponeses não apenas sabiam
ler, mas eram capazes de falar algumas frases
na antiga língua de seus antepassados, na qual
foram escritos os papiros da comunidade
gnóstica de Nag-Hammadi

Mas, o estudo dos textos resgatados em Nag-
Hammadi apresenta consideráveis dificuldades
lingüísticas não apenas porque estão escritos em
copta, cujo conhecimento é hoje restrito a uns
poucos especialistas, mas porque as línguas
envelhecem. Por mais corretas que sejam as
traduções, há palavras e expressões de difícil
acesso ao entendimento do leitor moderno.
Não é preciso ir ao copta de dezesseis séculos
atrás para termos idéia do problema. Basta esta
pequena amostra, em português, que fomos
buscar nos Diálogos, do excelente Frei Amador
Arrais7, ao discorrer sobre as navegações
portuguesas. Diz a certa altura, o bravo
sacerdote:
Acharam novas estrelas, navegaram mares e
climas incógnitos, descobriram a ignorância dos
geógrafos antigos, que o mundo tinha por
mestres de verdades ocultas. Tomaram o direito
às costas, diminuíram e acrescentaram graus,
emendaram as alturas; e sem mais letras
especulativas, que as que se praticam em o
convés de um navio, gastaram o louvor a muitos,
que em célebres universidades haviam gastado
seu tempo. Reprovaram as távoas de Ptolomeu,
porque caso que fosse varão doctíssimo, não
fondou aqueles mares, nem andou por aquelas
regiões.
E muito a propósito:
Descobriram o sepulcro e martírio do Apóstolo
Santo Tomé...
Em outras palavras - palavras de hoje e que não
serão as de daqui a cinco séculos - Frei Arrais
relata a saga de patrícios destemidos que
navegaram por mares desconhecidos até dos
geógrafos que fizeram levantamentos do traçado
das costas marítimas, retificando os mapas de
então, corrigindo distâncias e alturas. Tudo isso
sem grandes estudos, pois não vinham os bravos
marujos de bancos acadêmicos, mas da prática
rude no convés de seus barcos, visto que
contestaram a fama (gastaram louvor) de muito
sábio de gabinete. Até o grande Ptolomeu
questionaram, ainda que dos mais ilustres de seu
tempo, pela simples razão de que o sábio não
promovera sondagens naqueles mares ("Não
fondou") e nem por aquelas terras perambulou.
Problemas lingüísticos explicariam, assim, pelo
menos em parte, a demora na divulgação dos
textos em línguas modernas, em vista do
reduzido número de especialistas em condições
culturais de enfrentar a complexa tarefa de fazer
os coptas do século IV 'falarem', por exemplo, o
inglês do século XX.

Mas não foi somente isso. Embora de maneira
mais sutil do que Gillabert ou Hans Jonas, o Prof.
James M. Robinson, responsável pelo projeto da
tradução, invoca as mesmas razões ao informar,
no prefácio de The Nag Hammadi Library, que a
publicação dos tratados encontrou uma
quantidade de obstáculos de natureza política e
cultural. Daí porque somente trinta e dois anos
após a descoberta dos manuscritos foi possível
lançar a versão inglesa completa, ansiosamente
desejada, embora textos esparsos já fossem
conhecidos principalmente em inglês, francês e
alemão.
Lembro-me de um exemplar em francês do
Evangelho de Tomé que me surpreendeu aí pelo
início da década de sessenta, numa livraria do
Rio de Janeiro. Evangelho de Tomé? - perguntei a
mim mesmo. Que seria aquilo? Percorri o
pequeno volume com olhos apressados ainda
que curiosos, mas fiquei na ambigüidade,
insuficiente para sustentar o impulso de adquirilo.
Além do mais, eram intensas, à época, as
atividades profissionais e escasso o tempo para
mergulhar em assuntos rarefeitos como um
enigmático evangelho que se apresentava por si
mesmo, sem textos explicativos ou comentários
esclarecedores.
Somente em 1988 iria encontrar a explicação
para a hesitação experimentada há mais de um
quarto de século. E que no prefácio ao livro de
Gillabert, Paule Salvan lembra o envolvimento do
experimentador com o objeto de seus estudos,
segundo a física contemporânea, ao preconisar
que ele não consegue "manter-se à margem da
experiência",o que o transforma de observador
em participante. E conclui Salvan:
Se nas ciências exatas começa a impor-se essa
ótica, ela é há
muito tempo evidente no que concerne às
ciências humanas.
É verdade isso. É também por isso, que ela vê
'desafio e fascinação' "no estado psíquico" do
exegeta contemporâneo confrontado com a
experiência gnóstica, que deve, afinal, levá-lo a
um 'abandono à intuição liberadora'.
"Não é impunemente que o estudioso se
interessa pela gnose", ensina Salvan, que a
considera como espécie de 'sutil e delicioso
veneno'. Dessa 'irresistível impregnação' não
escapou Jacques Lacarrière (citado por Salvan),
segundo o qual a gnose o foi envolvendo
'insidiosamente', à medida que seus estudos se
ampliavam.
Esse é também o pensamento de Gillabert, que o
reproduz na Conclusão do seu livro, quase que
com as mesmas palavras, ao declarar que "não
se brinca impunemente com a gnose". E
continua:
Ou a tratamos como um evento histórico entre
outros e, nesse caso, ela se recusa a liberar o
sentido oculto de seus ensinamentos, ou nos
deixamos envolver pelas questões que ela
coloca... (idem)
As posturas não são meramente nuançadas, mas
opostas e mutuamente excludentes. Numa, no
dizer de Gillabert, a gente se põe como que à
margem de um rio e o contempla; a outra é uma
aventura, atiramo-nos à água.
Assim, quando tive nas mãos o texto francês do
Evangelho de Tomé, nos idos de 60, estava
apenas à margem do rio a contemplar a corrente
que passava. Estava... Não era ainda nem
mesmo o observador a que se refere Salvan,
quanto mais o participante. Já não posso mais
dizer que apenas vejo o rio passar, dado que me
atirei à água, fascinado pelos enigmas e desafios
do gnosticismo, ante os quais se torna impraticável
a imparcialidade, tão cara aos eruditos que
militam nos meios acadêmicos e que tanto se
esforçam por apresentar estudos mais informativos
do que opinativos.
Isso não se pode dizer de Gillabert. Sua
prefaciadora chama a atenção para o fato de que
o leitor tem diante de si "um critério referencial
incomparável, sob a condição, bem entendido,
de que esteja disposto a acolher sem
preconceitos o tratamento muito pessoal e bem
pouco acadêmico de seu comentador". Não
apenas concordo com essa avaliação do
material, mas me sinto perfeitamente à vontade
com esse tipo de abordagem. Gosto do autor que
toma posição, opina, debate, rejeita ou acolhe
conceitos, à medida em que informa.
Impacientam-me as exposições acolchoadas em
cautelas, escorregadias, como que assépticas,
nas quais o autor fica mais atento à preservação
de seu status acadêmico do que ao trabalho de
transmitir ao leitor uma visão nítida do objeto de
seus escritos, ainda que sujeita, eventualmente,
a correções e até a recuos mais ou menos
graves. Ao decidir-se por uma temática, o
estudioso faz uma opção de envolvimento
pessoal da qual não precisa envergonhar-se e
diante da qual não deve intimidar- se. O leitor
gosta (e tem o direito) de saber quem é o autor
do texto oferecido, o que tem ele a dizer e o que
pensa do assunto.
Em Émile Gillabert encontramos esse clima
intelectual. Ele tem a coragem da afirmação,
abandona-se aos impulsos da intuição, e se
recusa até a amaciar a contundência de suas
críticas aos 'monstros sagrados' da erudição que
produziram os primeiros e mais importantes
estudos sobre os documentos coptas. Para isso,
começa o livro com a exposição do que
considera les errements de la critique, desde os
heresiólogos da primeira hora que passaram
para os séculos futuros a noção de que a gnose
foi uma heresia cristã engendrada por Simão, o
Mago. Para os menos radicais, o gnosticismo
seria, no mínimo, posterior ao cristianismo, dado
que foi tratado pelos pais da Igreja como heresia.
Lembra Harnack que, em meado do século XIX,
entendeu a gnose como um processo de
"helenização do cristianismo", ao passo que
Bousset, em tempos mais recentes, considera
esse movimento de idéias anterior ao
cristianismo, com o qual seus pontos de contacto
seriam meramente acidentais. Gillabert é
também dessa opinião, mas não hesita em dar
passo mais audacioso ao entender não a gnose
como heresia cristã, mas o cristianismo como um
"desvio da gnose".
Por essa e outras é que Paule Salvan previne,
logo no prefácio, que Gillabert pode parecer um
tanto polêmico para o gosto de certos leitores.
Sempre resta, contudo, o recurso de uma leitura
mais ampla, da qual possa resultar visão
balanceada, obtida a partir de uma colagem
criteriosa das opiniões em debate. E o que
pretendemos fazer com este livro.
Gillabert queixa-se de que os ocidentais
herdaram a miopia intelectual grega que, a seu
ver, jamais compreendeu em maior profundidade
qualquer religião oriental, por causa da
"inaptidão para o conhecimento metafísico". Ele
diz isso porque entende a gnose como uma
doutrina esotérica e, portanto, iniciática, no que
estamos, em princípio, de acordo. Dessa 'miopia'
não teria escapado nem mesmo o eminente Prof.
Puech que se revela preso ao 'preconceito
clássico'; que pressupõe para todos os textos
gnósticos um original grego. Este, como outros
especialistas, segundo Gillabert, não apenas
desconsideram a fase oral dos ensinamentos,
como o fato de que, mesmo em grego, os
documentos teriam de apoiar-se em substratos
hebraicos, aramaicos ou coptas correspondentes.
Esse mesmo tipo de 'inconseqüência', no qual
teria incorrido Puech, poderia ser atribuído a
outra eminente personalidade, o Prof. Quispel.
Lembramos, por nossa conta, que também a Dra.
Pagels considera pacífico o entendimento de que
os textos coptas são versões de originais gregos.
Por mais importante que seja - e é, de fato -, o
problema linguístico não deve, a meu ver, ser
supervalorizado, a fim de não tirar de foco a
temática nuclear da mensagem em si mesma, ou
se transformaria tudo numa discussão
acadêmica sobre semântica. Penso, contudo, que
Gillabert está com a razão em insistir na tese da
tradição oral, anterior mesmo aos textos gregos,
dado que estes pressupõem, necessariamente,
material em aramaico ou copta. Parece-me
inconsistente imaginar que ensinamentos, nos
quais se admite a participação de primitivos
seguidores de Jesus, possam ter surgido
diretamente em grego, sem algum suporte
anterior.
O importante, a seu ver, é que os documentos de
Nag Hammadi nos trazem convincente conteúdo
esotérico, iniciático, oculto ou, no mais claro
dizer do Prof. Geddes MacGregor,
"parapsicológico". Puech percebe essa realidade
e nem poderia deixar e identificá-la em razão da
sua vigorosa dedicação ao estudo dos papiros
coptas. Mas não abandona suas reservadas
posturas acadêmicas perante o aspecto
"ocultista" neles contido.
De qualquer modo, o ilustre especialista francês
declara sua decisão no sentido de tentar ler os
documentos' com os olhos de um gnóstico'. Não
que Gillabert ache que ele o tenha conseguido,
mas não há dúvida de que é a postura correta a
adotar o estudioso ante qualquer temática, ou
seja, a de buscar a sua integração no
pensamento contido naquilo que examina, no
honesto esforço de comunicar-se com ele.
Comunicar é tornar comum, provocar um fluxo e
refluxo de idéias, como se o objeto examinado
também tivesse algo importante a dizer, como,
de fato, tem. Se não conseguir vencer o vazio
que o separa do objeto de seu estudo, o
pesquisador permanece na posição de mero
observador, sem alcançar a do participante. Se
você apenas observa o objeto, ele não se
entrega ao seu entendimento; é preciso que
você vá até ele, penetre nos seus arcanos,
aceite, ainda que em princípio e com reservas, o
que ele tem a dizer de si mesmo.

É correta, pois, a atitude de Puech ao dispor-se a
estudar os textos de Nag Hammadi com os olhos
de um gnóstico. Acho, porém, que não bastam os
olhos, é preciso mais. Os documentos coptas
pressupõem a aceitação tácita de uma realidade
espiritual ampla para a qual Gillabert considera
acertadamente que a mentalidade ocidental é
pouco receptiva, para dizer o mínimo, quando
não refratária.
Nessa mesma linha de raciocínio, lembra
MacGregor o pressuposto de uma "sensibilidade
para realidades inacessíveis aos físicos, químicos
e botânicos", como condição que tem faltado aos
"teólogos acadêmicos, medievais e modernos"
que, desatentos a essa "outra dimensão do Ser",
não percebem a natureza fundamental daquilo
que constitui o objeto de suas especulações.
É reconfortante ler, nesse mesmo autor, a
observação de que "a postura gnóstica não
pertence a nenhuma época em particular. Ela é
perene, ainda que pela única razão de que é o
elemento criativo em todas as religiões. Ela
começa com o aprofundamento da percepção
das realidades espirituais à nossa volta", ensina
ele.
Ainda há pouco, no livro, empregava o termo
"paranormal" para adequar à mentalidade
contemporânea os fenômenos implícita ou explicitamente
contidos, não apenas na gnose, mas
no cristianismo primitivo.
O que Gillabert e MacGregor estão passando
para o leitor, portanto, é o conceito de que a
correta interpretação e avaliação da gnose parte
de certa familiaridade, quando não genuína
aceitação, da realidade espiritual, apoiada, por
sua vez, em sólida estrutura fenomenológica,
que embora ainda rejeitada pela ciência como
um todo, vai se tornando irrecusável. MacGregor
não hesita em explicitar aspectos específicos, ao
mencionar conceitos como reencarnação,
sobrevivência do ser ou comunicabilidade entre
'vivos' e 'mortos', bem como causa e efeito, ao
lembrar que o cristianismo surgiu precisamente
nesse contexto de consciência da realidade
psíquica.

Pouco adiante afirma que...
Toda a literatura do Novo Testamento, para não
dizer a vasta literatura não canônica do
cristianismo primitivo, foi escrita por e para
pessoas que haviam desenvolvido considerável
sensibilidade aos fenômenos psíquicos.
MacGregor tem, pois, uma visão como que
espírita da gnose. Gillabert não vai a esses
extremos, ainda que propondo com veemência a
necessidade de uma leitura receptiva. Sua
proposta, contudo, fica nos limites mais
acanhados de um esoterismo, algo metafísico,
sem envolvimento com os aspectos que
MacGregor considera essenciais à avaliação da
gnose. Nota-se isso em Gillabert mais
especificamente para o fim do seu livro (pag.
180) onde atribui "caráter alucinatório" às
aparições póstumas de Jesus. A página 184,
reitera essa postura, ao apoiar os teólogos
contemporâneos que consideram as aparições
como "uma ruptura com o real" em vista do
"evidente caráter alucinatório" nelas implícito. É
ainda a essa altura (pag. 183) que ele observa
ser inaceitável para os gnósticos "uma
ressurreição no sentido pauliniano da
reanimação de um cadáver". Fico com o direito
de supor que o ilustrado autor não leu com
atenção devida o capítulo 15 da I Epístola aos
Coríntios, no qual, exatamente ao contrário do
que supõe Gillabert, Paulo ensina que o Cristo
ressurge não no corpo material que se
desintegra, mas no seu corpo espiritual.
Aliás, são manifestas as restrições de Gillabert à
doutrina pauliniana em geral, de vez que
encontramos entre outras obras suas o estudo
Saint Paul ou le Colosse aux pieds d'argile.
Não é só em Puech, portanto, que se identifica a
dificuldade em 1er os textos gnósticos com
'olhos gnósticos'. Também ele parece não ter
tido muito êxito em 1er Paulo com olhos
paulinianos. Seja como for, Gillabert admite que,
mesmo com "pés de barro", o Apóstolo dos
Gentios é uma figura colossal e não apenas o
primeiro herético, como está dito alhures em seu
livro. Nosso propósito aqui, no entanto, não é
fazer a apologia de Paulo, que ele não precisa
disso, mas paradoxalmente, dar razão a
Gillabert, quando invoca a dificuldade em
descondicionar-se o pesquisador de sua
formação cultural para examinar sem
preconceitos o objeto de sua atenção.
Lembra ele, ainda na sua crítica aos estudiosos
dos documentos coptas, a postura de sacerdotes
católicos que, mesmo dotados de erudição e sob
circunstâncias favoráveis, não poderiam
"aprofundar a gnose com o necessário
descondicionamento". Cita, para ilustrar essa
afirmativa, a posição do Abade Jacques E.
Ménard, professor da Universidade de Ciências
Humanas de Strasburgo, que não se livra de seus
"antecedentes religiosos, teológicos e bíblicos",
no exame dos textos. Para o eminente
sacerdote, segundo Gillabert, o Evangelho de
Tomé não passa de um sucedâneo (apócrifo,
naturalmente) dos canônicos, cuja anterioridade
seria para ele inquestionável, ou se poria em
xeque "as origens mesmas do cristianismo".
Ademais, não se exime Ménard de ver em outro
texto gnóstico - o Evangelho da Verdade - "essa
paixão platônica da alma como prisioneira do
corpo". No seu entender, ainda segundo
Gillabert, nada há de cristão nisso, tanto quanto
na doutrina de que o ser humano é o artífice de
sua própria redenção, na medida em que assume
consciência de seu estado de prisioneiro da
matéria. Isso não teria nada a ver com 'o
cristianismo autêntico'.

Temos de nos acostumar ao trato de tais
divergências e discordâncias nos volumosos
debates acerca da gnose em geral e dos
documentos coptas em particular, se é que
desejamos formular juízo pessoal acerca de tudo
isso. Raramente, nesse contexto, os eruditos
oferecem convergências de conceitos e pontos
de vista. Não resta a menor dúvida, porém, de
que a discussão suscitada pelos papiros de Nag
Hammadi nos interessa mais do que estamos
preparados para supor.
Dessa singular relevância nos falam, com
inesperada veemência, outros estudiosos do
assunto. MacGregor entende a matéria como
apoio para um verdadeiro "renascimento do
pensamento cristão". Tão convencido está ele da
seriedade de sua avaliação, que colocou essas
palavras no rosto de seu livro, como subtítulo
explicativo.
Gillabert não deixa por menos ao declarar nas
páginas iniciais de seu estudo, "sem pretender
passar por profeta, (...) que o mundo de amanhã
será gnóstico ou não será".
De minha parte, nem precisaria de tais
estímulos, de vez que a temática da gnose é das
que me interessam naturalmente pelo que ela
tem a ver com as estruturas do meu próprio
pensamento. Foi movido por esse interesse
pessoal que comecei a estudar o que me foi
possível encontrar sobre o assunto. O leitor está
sabendo que a viagem através da erudição
internacional é acidentada e difícil, não apenas
porque as opiniões se chocam e se contradizem,
mas porque, trabalhando com tema já de
natureza complexa, nem sempre os autores
conseguem livrar-se do jargão profissional e da
metodologia esperada dos papéis direcionados
prioritariamente para o meio acadêmico
especializado, como se ficassem a escrever uns
para os outros.
Acresce que, como também assinalamos, tanto o
assunto influencia seus relatores, como estes, ao
interpretá-los, exercem sua influência sobre os
textos analisados, o que é perfeitamente
compreensível. O problema, contudo, está em
que raramente nas rodas acadêmicas os
estudiosos têm preparo suficiente - ou disposição
- para trabalhar com material comprometido com
a incômoda realidade espiritual, como é o caso
da gnose.
Por outro lado, não há como encontrar no corpo
doutrinário da gnose ou de qualquer outro
território intelectual a ser explorado aquilo que
não estamos procurando, precisamente porque
já decidimos aprioristicamente que este ou
aquele aspecto é irrelevante, fantasista ou
anticientífico. Tomemos um exemplo concreto
para caracterizar com nitidez o que estamos
tentando dizer. Se o crítico ou pesquisador
rejeita sumariamente o conceito das vidas
sucessivas (reencarnação), que integra, entre
outros, o edifício doutrinário do gnosticismo,
como poderá, na armação de suas hipóteses de
trabalho, entender aspectos vitais à compreensão
da doutrina que constitui o próprio
objeto de seu estudo?

Esse dado falta a Gillabert, que está incorrendo
em um dos errements que condena nos demais
críticos. Puech é outro que não parece
suficientemente convencido dessa leitura.
MacGregor revela-se mais bem preparado nesse
aspecto, por admitir, como se faz necessário, o
importante aspecto "parapsicológico" contido na
gnose. O gnosticismo é um sistema doutrinário
desenvolvido a partir de realidades psíquicas
experimentais. Se as observações foram bem
feitas ou não, se as inferências são corretas ou
incorretas, se os fenômenos ditos
parapsicológicos justificam ou não tais ou quais
conseqüências doutrinárias, são aspectos a
ponderar; uma coisa, porém, é certa: o
gnosticismo partiu de premissas que a Igreja
ignorou, rejeitou ou condenou, porque entendeu
que ameaçavam fraturar aspectos doutrinários e
práticos já cristalizados, ou em adiantado
processo de consolidação.
O observador moderno, contudo, honestamente
empenhado num esforço de análise crítica do
gnosticismo, estará criando bloqueios insuperáveis
se não adotar atitudes menos
dogmáticas do que as da Igreja primitiva. Ele não
deve dar-se ao luxo de ignorar, rejeitar ou
condenar aprioristicamente a base mesma sobre
a qual foi montado o edifício doutrinário do
gnosticismo. Seria essa, ainda mais, uma atitude
obtusa, dado que o estudioso que desprezar os
apoios parapsicológicos não conseguirá dominar
o objeto de suas pesquisas.
Não basta, por isso, os olhos de um gnóstico
para abordar os problemas suscitados pelo
gnosticismo, é preciso admitir, ainda que como
meras hipóteses, as premissas em que seus
pensadores se firmaram para montar as
estruturas doutrinárias que estamos hoje
contemplando mais de perto. Não estou
preconizando um adesismo ou sonhando com
'conversões' importantes à causa da realidade
espiritual, ainda que isso fosse desejável, mas é
preciso ressaltar que, sem tal instrumentação,
até o simples acesso aos textos gnósticos tornase
no mínimo problemático.
Gillabert ou Gedes MacGregor, tanto quanto
posso avaliar, constituem honrosas exceções às
posturas mais ou menos assépticas do eruditopadrão,
sempre cautelosos na abordagem de
conceitos como o transe, reencarnação,
sobrevivência do ser, e outros. Mesmo
demonstrando melhor preparo quanto aos
aspectos da gnose, que considera esotérica, o
fenômeno paranormal ou mediúnico da visão de
Paulo, nas imediações de Damasco, se reduz
para Gillabert a uma crise alucinatória.
Seja como for, ele se queixa de que a pressão
provinda do contexto acadêmico induz os
estudiosos a levarem em conta apenas os
interesses culturais da Universidade ou da Igreja,
e obriga o esoterista a anular-se.
Nessa mesma ordem de idéias, lembra ainda que
Puech "cerca-se de toda a prudência que sua
função requer". E continua:
É preciso precaver-se com uma saída, para o
caso em que a descoberta futura de novos
documentos venha contradizer hipótese de
trabalho.

Ainda assim, Gillabert acha que o ilustre
professor "não sufoca completamente (nele
próprio) o admirador da gnose".
Como não necessito de tais cautelas, sobra-me
espaço para o exercício da liberdade de pensar e
alinhar reflexões obtidas a partir da abordagem
descondicionada que Gillabert preconiza. Não
tenho compromissos com universidades ou
igrejas e nem preciso deixar saídas camufladas
para eventual retirada estratégica. Como dizia há
pouco, examinei detidamente a literatura
existente, ao meu alcance lingüístico e cultural,
mas não hesitei ante a tarefa maior de
mergulhar nos próprios textos de Nag Hammadi
na sua versão em língua inglesa, a fim de buscar
na fonte a alegria de certos achados e "insights"
que talvez não encontrasse nos comentários da
erudição.
Não porque não sejam competentes e
esclarecedores, mas porque refletem leitura
personalizada do assunto e, necessariamente,
em segunda mão. Estou convencido, porém, de
que já se pode identificar aspectos consensuais,
senão interpretativos, pelo menos naquilo que
constitui a linha mestra do pensamento gnóstico.

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